terça-feira, 4 de fevereiro de 2014


PAREDE DE VIDRO

Ela só tem 6 anos, pensei...

O ônibus estava lotado, todos os passageiros após atravessarem a roleta olhavam focados na minha cabeça tentavam disfarçar os olhares e ás vezes a vergonha de ter olhado.
Infelizmente toda quarta-feira da segunda semana de cada mês tenho que me arrastar até o carro na garagem, dirigir em direção ao centro da cidade por uma meia hora, lutar por um estacionamento perto da clínica e, claro, a melhor parte dessas quartas é a quantidade de injeções e remédios para continuar com o tratamento. O “C”, é como prefiro chamar o meu câncer, está sempre ali, me acompanhando em todos os lugares, ele construiu uma parede de vidro em volta de mim. Todos me olham e eu posso olhá-los também, mas não podem me tocar, melhor não querem, não querem quebrar essa parede. Ficar longe dos olhares dos outros é sempre mais confortável.
Ontem (27 de janeiro) quando meu carro resolveu não funcionar, talvez, estava em greve por não ser lavado há alguns meses, precisei optar por outro veículo que não me cansasse, o ônibus. Ah, andar de ônibus, não existe atividade mais constrangedora para uma mulher alta, pálida, careca, com um vestido longo tentando esconder as veias saltadas por falta de peso!
Os primeiros 15 min. foram perfeitos, existia apenas o motorista, o cobrador e o vento que vinha da janela, do lado de fora do meu quadrado transparente. A paz para mim costumou a ser algo curto na minha vida. As pessoas começaram a subir, assim que pagavam suas passagens iniciava a entrada ao comum ritual de se incluírem do lado de fora do meu mundo, aquele breve instante onde a roleta faz uma volta e joga alguém aleatoriamente no que seria o meu espaço, que incrivelmente começa a diminuir a cada pessoa que entra, olha aquela mulher pálida e careca, e então se sentam em qualquer lugar que mantenha uma distância saudável da pálida aqui. Esqueci-me de contar o “C” criou essa parede onde eu não posso sair, mas as pessoas podem entrar só que preferem tornar meu mundo menor sobrando somente eu e o assento vazio ao meu lado.
― Se segura Amy! ― grita uma mulher após atravessar a roleta. Consigo ver, forçando um pouco a visão, uma pequena criatura vinda em direção ao assento vazio, quase caindo sem ter a onde se segurar.
O Pequeno-pedaço-de-gente se sentou ao meu lado enquanto meus olhos se esbarravam com o olhar reprovador da mãe para menina, inclino minha cabeça para baixo e vejo aquela criança me observando atentamente, boquiaberta com a ausência dos meus cabelos (ruivos).
― Oi ― diz ela com um sorriso, mostrando um dente da frente faltando. Noto que a parede acaba de rachar.
― Oi ― respondo gaguejando.
A mãe do Pequeno-pedaço-de-gente pede para ela fazer silêncio, porém dou sinal de que não havia problema.
― Eu tenho 6 anos, quantos anos você tem? ― pergunta a menina.
― Tenho 25. ― respondo intrigada com a pergunta. Mais uma rachadura surge.
― Quando eu tiver 25 anos também vou ficar careca? ― pergunta apontando para minha cabeça.
― Não, somos diferentes, você não está doente. ― respondo em seco, vendo que a mãe da menina estava intrigada com a conversa.
― Mas você é tão linda, posso colocar esse lenço na minha cabeça? Porque você está doente? Minha vó disse que quando a gente fica doente a gente tem que tomar remédio, o seu remédio é bom? Porque o meu tem gosto de morango. Eu posso te dar o meu remédio se você quiser! ― diz ela sorrindo e pela primeira vez reparo no seu olhar inocente, que não era atingida pela parede, todo aquele ritual não fazia efeito nela, era imune aos dois mundos paralelos (eu e os outros), a menina conseguia uni-los de alguma forma.
― O meu remédio é diferente do seu. Minha doença não tem cura, nunca vou deixar de ficar doente. ― digo a ela tentando poupá-la do real sentido de tudo.
― Eu aprendi com a minha vó que o amor cura tudo, você só precisa de amor. ― fala a pequena me agarrando, dando um abraço apertado no meu frágil corpo, não conseguia e não sabia o que dizer aquela menina. Ela não me soltava e minha única alternativa foi tocá-la, abraçá-la com a mesma ternura que ela me doou. A sensação de abraçar era algo apagado da minha mente, como havia me esquecido dessa energia transmitida em um abraço. As lágrimas escorreram discretamente. Não sei por quanto tempo ficamos abraçadas, mas foi tempo suficiente para me sentir viva de novo. Ela havia quebrado a minha parede de vidro.

Autora: Hanna Águida

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